Repost: A visita [conto]
Ainda ontem dei um pulo no Morro da Boa Esperança; fui ver
Seu Facundo. Facundo Moreira de Sá; Seu Facundo vive naquele barraco
nauseabundo, seu Facundo tem um corpo desengonçado, fartos bigodes que
esconde o lábio superior, geme enquanto
anda, mas diz não sentir nenhuma dor, a cabeçorra balcânica, visível uma rala carapinha,
a compleição o faz parecer um bonecão flácido e inflado, tem agora um cachorro
Paraíba, ''apareceu dia desses, batizei – o de Aparecido'', tem um focinho
grosso, trôpego, faceiro e preguiçoso, seu Facundo sofre de hemorróidas, por
isso nunca senta, mantém se de pé, ereto, está fazendo tratamento com um médico
proctologista, já está usando até uma pomada que pegou no posto de saúde.
''Gosto de morar aqui na favela, tenho vizinhos que gostam de futebol, o Mané
Boca de Fossa é corintiano doente, Jóca é Palmeiras, eu continuo a torcer pelo Sporting,
time da ''minha terrinha''. Seu Facundo nasceu em Portugal, numa aldeia perto
de uma freguesia de Santarém, ''Freguesia de Abrã Largo'' * ''Sabe quem está
enterrado em Santarém?’’ Pergunta; tira a cabeçorra pela janela, tosse e
escarra. Depois de uma breve pausa ouve - se
o nome soletrado em um tom
altaneiro: Pedro Álvares Cabral, o navegador de Sagres, diz triunfante;
pigarrea, infla os pulmões, peida, exibe uma contração facial, como um autômato, cômico, abre os braços,
tenho os olhos fixos ante a encenação, me sinto arrebatado. Seu Facundo agora
está empolgado, ofegante, atabalhoado, tateia os bolsos do suéter marrom com
volúpia, abre uma gaveta da velha cristaleira de Lisboa e toma pra si um estojo
de madeira envernizada, dentro está o velho cachimbo Dublin. ''Sabe a quem
pertenceu esse cachimbo britânico ?'' Meneio a cabeça de maneira negativa, ele
diz: ''a Lord Thomaz Davis, 1.º Visconde Nelson KB que liderou os navegadores
ingleses na Batalha de Trafalgar'' Davis era o homem de confiança do Almirante
Nelson, depois de alguns segundos de silêncio seu Facundo criva o olhar em mim
'' Já ouviu falar da Batalha de Trafalgar ?'' Silencio por duvidar que o tal
cachimbo que está com o velhote é mesmo o original. Notando que eu nada
respondi seu Facundo enche o fornilho do velho Dublin, aprumo o olhar para a
embalagem e leio ‘’ Finamore Pipe Mixture’’ seu Facundo acende o fumo com
fósforo, depois das primeiras tragadas envolto numa bruma de tabaco volta a
falar da tal terrinha: Pedro Álvares
Cabral está enterrado na cidade de minha família, quero ser enterrado lá também
junto de papai, mamãe e Cavaco, meu irmãozinho que foi morar no céu por conta
de uma febre tifóide numa noite fria de janeiro. Cavaco gostava de pescar no
regato da aldeia, lá mamãe lavava roupas que os vizinhos levavam para ela,
mamãe era lavadeira, minha heroína, Celeste Moreira de Sá, mamãe dividia o
dinheiro que recebia pelas roupas lavadas com papai, João Moreira de Sá, papai
preparava compotas de figos verdes e azeitonas, vendia para seu Alcides, o dono
do armazém da freguesia, cabisbaixo seu Facundo interrompe a invectiva
familiar; dá dois fortes tragos de fumaça, pigarreia e coça a carapinha
crioula, o pouco de cabelo que lhe resta naquela grande cabeça, comum nos
homens da Península Balcânica. ''Seu Facundo sabe de cor o hino de Portugal,
está lendo agora Guerra e Paz. ''Gosto daquela menina, fecha os olhos até que o
nome brote na memória ..... ''Natasha é uma menina virtuosa'' Seu Facundo é um
entusiasta da poesia de Fernando Pessoa, antes de ir pra minha casa ouço – o
recitar um poema de Pessoa:
'' Outrora eu era
daqui, e hoje regresso estrangeiro, Forasteiro do que vejo e ouço, velho de
mim. Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei. Eu reinei no que
nunca fui''
Seu Facundo lê Guerra e Paz, conhece a poesia de Fernando
Pessoa, vive com aquela cabeçorra balcânica, sofre de hemorróidas, manca, vai
ao médico, tem um cachorro Paraíba por nome de Aparecido, fuma tabaco importado
em seu centenário cachimbo dublyn; pigarrea, tem fartos bigodes embranquecidos,
mora numa casa nojenta, peida e sua contumazmente, nunca ou quase nunca tergiversa, como um soldado em patrulha pode
morrer a qualquer hora. ..... isso é tudo o que ele tem e sabe.......
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